Lêdo Ivo

Lêdo Ivo Poems

Que silêncio incompleto entre tantos rumores!
Agora, e só agora, eles tentam dizer-nos
que amaram e esqueceram, e sempre ficaram longe
da verdade final. O amor é uma dívida
irresgatável contraída na escuridão
e só morte libera os pagadores relapsos.

Tudo terminará num oceano de sombras.
Os mortos também acabam, após tantas lágrimas
e missas cantadas e anúncios nos jornais.
Nascemos para nos evaporar, após ter sido
a água que cobre a rampa do estaleiro.
Nascemos para dizer o nosso nome ao vento.

Nossos corpos rastejaram até a entrada da gruta.
Mas onde estavam as almas naquele instrante
de êxtase e servidão? Estavam escondidas
como os morcegos, dormiam plácidas como as placentas.
...

What an incomplete silence among so many sounds!
Now, and only now, they are trying to tell us
that they loved and they forgot, and always remained far
from any final truth. Love is an unredeemable
debt contracted in the dark
and only death can free the debtors from default.

Everything will reach its end in an ocean of shadows.
The dead also cease, after so many tears,
and masses sung and notices in the daily newspapers.
We are born to evaporate, after having been
water lapping at the boatyard launching ramp.
We are born to say our name to the wind.

Our bodies crawled to the entrance of the cave.
But where were our souls at that moment
of ecstasy and bondage? They were hidden
like bats, sleeping, as placid as placentas.
...

Na tarde de domingo, volto ao cemitério velho de Maceió
onde os meus mortos jamais terminam de morrer
de suas mortes tuberculosas e cancerosas
que atravessam a maresia e as constelações
com as suas tosses e gemidos e imprecações
e escarros escuros
e em silêncio os intimo a voltar a esta vida
em que desde a infância eles viviam lentamente
com a amargura dos dias longos colada às suas existências monótonas
e o medo de morrer dos que assistem ao cair da tarde
quando, após a chuva, as tanajuras se espalham
no chão maternal de Alagoas e não podem mais voar.
Digo aos meus mortos: Levantai-vos, voltai a este dia inacabado
que precisa de vós, de vossa tosse persistente e de vossos gestos
enfadados e de vossos passos nas ruas tortas de Maceió. Retornai aos sonhos insípidos
e às janelas abertas sobre o mormaço.

Na tarde de domingo, entre os mausoléus
que parecem suspensos pelo vento
no ar azul
o silêncio dos mortos me diz que eles não voltarão.
Não adianta chamá-los. No lugar em que estão, não há retorno.
Apenas nomes em lápides. Apenas nomes. E o barulho do mar.
...

Sunday afternoon, I return to the old Maceió cemetery
where my dead never stop dying
their consumptive and cancerous deaths
that penetrate the ebb tide stench and constellations
with coughs, groans, imprecations
and their dark mucus
and in silence I summon them to return to this life
where from childhood on they slowly lived
with the bitterness of long days fixed to their monotonous existence
and the fear of dying of those who witness the close of day
when, after rain, the ants are scattered
across the maternal ground of Alagoas and can no longer fly.
I say to my dead: Arise, come back to this unfinished day
that has need of you, of your persistent cough and your tired gestures
and your footsteps on Maceió's crooked lanes. Return to those insipid dreams
and windows opening on to suffocating heat.

On Sunday afternoon, among mausoleums
that seem suspended by the wind
in the bluish air,
the silence of the dead tells me they won't come back.
No use calling them. From the place where they are now, there's no return.
Just names carved in stone. Just names. And the sound of the sea.
...

Minha pátria não é a língua portuguesa.
Nenhuma língua é a pátria.
Minha pátria é a terra mole e peganhenta onde nasci
e o vento que sopra em Maceió.
São os caranguejos que correm na lama dos mangues
e o oceano cujas ondas continuam molhando os meus pés quando sonho.
Minha pátria são os morcegos suspensos no forro das igrejas carcomidas,
os loucos que dançam ao entardecer no hospício junto ao mar,
e o céu encurvado pelas constelações.
Minha pátria são os apitos dos navios
e o farol no alto da colina.
Minha pátria é a mão do mendigo na manhã radiosa.
São os estaleiros apodrecidos
e os cemitérios marinhos onde os meus ancestrais tuberculosos e implaudados não não param de tossir e tremer nas noite frias
e o cheiro de açúcar nos armazéns portuários
e as tainhas que se debatem nas redes dos pescadores
e as résteas de cebola enrodilhadas na treva
e a chuva que cai sobre os currais de peixe.
A língua de que me utilizo não é e nunca foi a minha pátria.
Nenhuma língua enganosa é a pátria.
Ela serve apenas para que eu celebre a minha grande e pobre pátria muda,
minha pátria desintérica e desdentada, sem gramática e sem dicionário,
minha pátria sem língua e sem palavras.
...

The Portuguese language is not my home.
No language is a home.
My home is the soft and viscous land where I was born
and the waft of the wind in Maceió.
It is the crabs scurrying through the muck of mangrove swamps
and the ocean whose waves still wet my feet when I dream.
My home is bats hanging from the ceiling of churches in decay,
madmen dancing at sunset in the asylum by the sea,
and the sky curved round by constellations.
My home is the sound of the ship's horn
and the lighthouse high on the hill.
My home is the beggar's hand in radiant morning.
And the rotting shipyards
and the graves by the sea where my ancestors, consumptive
and malarial, can't stop coughing and trembling on cold nights
and the smell of sugar in warehouses along the wharves
and mullets struggling in the fishermen's nets
and strands of onions tangled in the dark
and rain falling over the fish pens.
The language I use is not and never was my home.
No deceitful language is a home.
It merely serves for me to celebrate my great impoverished silent land,
my dysentery-ridden toothless home, devoid of grammar books and dictionaries,
this land, my home, without language, without words.
...

Uma porta fechada não é suficiente para que o homem
esconda o seu amor. Ele também necessita de uma porta aberta
para poder partir e se perder na multidão quando esse amor explodir
como o barril de pólvora no arsenal alcançado pelo raio.
Um telhado não basta para que o homem se proteja
do calor e da tempestade. Para fugir ao relâmpago
ele precisa de um corpo estendido na cama
e ao alcance de sua mão ainda temerosa
de avançar no excuro quando a chuva cai no silêncio do mundo aberto como uma fruta
entre dios estrondos.
Na noite que declina, no dia que nasce,
o homem precisa de tudo: do amor e do raio.
...

A closed door is not enough for a man
to hide his love. He also needs an open door
so he can leave and lose himself in the crowd when that love explodes
like a barrel of powder in the arsenal hit by lightning.
A roof is not enough to protect a man
from heat and storm. To flee the thunderbolt
he needs a body stretched out in bed
and within reach of his hand still afraid
to advance in the dark as the rain falls on the silence of the world open like a fruit
between two thunderclaps.
In the night that falls, in the day that breaks,
man needs it all: love and the lightning bolt.
...

Neste dia de calor ardente, estou esperando a neve.
Sempre estive à sua espera.
Quando menino, li Recordações da Casa dos Mortos
e vi a neve caindo na estepe siberiana
e no casaco roto de Fédor Dostoievski.
Amo a neve porque ela não separa o dia da noite
nem afasta o céu das aflições da terra.
Une o que está separado:
os passos dos homens condenados ao gelo escurecido
e os suspiros de amor que se perdem no ar.
É necessário ter um ouvido muito afiado
para ouvir a música da neve caindo, algo quase silencioso
como o roçar da asa de um anjo, caso os anjos existissem,
ou o estertor de um pássaro.
Não se deve esperar a neve como se espera o amor.
São coisas diferentes. Basta abrirmos os olhos para ver a neve
cair no campo desolado. E ela cai em nós, a neve branca e fria
que não queima como o fogo do amor.
Para ver o amor os nossos olhos não bastam,
nem os ouvidos, nem a boca, nem mesmo os nossos corações
que batem na escuridão com o mesmo rumor
da neve caindo nas estepes
e nos telhados das cabanas escuras
e no casaco roto de Fédor Dostoievski.
Para ver o amor, nada basta. E tanto o frio do inverno como o calor escaldante
o afastam de nós, de nossos braços abertos
e de nossos corações atormentados.
Fiel à minha infância, prefiro ver a neve
que une o céu e a terra, a noite e o dia,
a ser a presa indefesa do amor,
o amor que não é branco nem puro nem frio como a neve.
...

On this day of burning heat, I'm waiting for snow.
I've been waiting for it always.
When I was a boy, I read Notes from the House of the Dead
and saw snow falling on Siberian steppes
and on the tattered coat of Fyodor Dostoevsky.
I love snow because it doesn't separate day from night
or distance heaven from the sufferings of earth.
It unites what's separate:
the footsteps of those condemned to darkened ice
and sighs of love vanishing in the air.
One has to have a fine-tuned ear
to hear the music of falling snow, something almost silent
like the touch of an angel's wing, assuming there are angels,
or the dying breath of a bird.
One shouldn't wait for snow the way one waits for love.
They are different things. It's enough to open our eyes to see the snow
falling on a deserted field. And it falls on us, cold white snow
that doesn't burn like the flame of love.
To see love our eyes do not suffice,
nor our ears, nor our mouth, nor even our hearts
that beat in the dark with the same sound
as snow falling on the steppes
and on the roofs of darkened hovels
and on the tattered coat of Fyodor Dostoevsky.
To see love, nothing suffices. Both winter cold and searing heat
keep it from us, from our open arms
and our tormented hearts.
Faithful to my childhood, I prefer to see snow
that unites heaven and earth, night and day,
rather than be a helpless prey to love,
love that is neither white nor pure nor cold as snow.
...

Sempre busquei a profusão das chuvas
e celebrei o excesso.

A porta que se abre à claridade do relâmpago
divide o dia em partes desiguais.
Mas entre a luz e a sombra há um espacço
onde o sonho e a vida acordada se juntam como dois corpos
separados das almas desunidas.
É a este lugar que retorno
quando a chuva cai em Maceió e derruba as folhas
dos cajueiros floridos.
Os goiamuns inquietos percebem nas locas a alteração do mundo
que oscila entre a lama e as raízes dos mangues
como duas cores do arco-íris.

Berço de tanajuras, patria ameaçada pelo trovão,
dunas sonâmbulas que só caminham à noite,
mar que umedece os lábios rachados da areia,
vento que dilacera o promontório,
longe de vós serei um exilado.
...

I always sought the profusion of the rains
and celebrated excess.

The door that opens on the clarity of lightning
divides the day into unequal parts.
But between the light and shadow there is a space
where dream and waking life join like two bodies
separated from their severed souls.
It is to this place that I return
when the rain falls in Maceió, dislodging the leaves
of the blossoming cashew trees.
The restless crabs notice in their tiny dens the changing of the world
that wavers between mud and mango roots
like two colors in a rainbow.

Cradle of tanajura ants, land threatened by thunder,
sleep-walking dunes that only walk at night,
sea that moistens the cracked lips of the sand,
wind that tears at the promontory,
far from you I'll be in banishment.
...

Para que pudéssemos atravessar o rio cheio de pedras
alguém, com um machado, subio até a floresta
e mudou árvores vivas em pranchas e mourões.

O outro lado é igual a este, na terra dividida.
Mas atravessamos a ponte, e nos segue a sombra
de alguém, semelhante a nós, que pensava unir

o que as águas separam, correndo entre pedras.
...

So we could cross the river filled with stones
someone, with an ax, went up into the forest
and turned the living trees to planks and stakes.

The other side is just like this, in this divided land.
But we cross the bridge, and the shadow of someone
follows us, someone similar to us, who wanted to unite

what the water separates, flowing amongst its stones.
...

Não posso admitir que os sonhos
sejam um privilégio das criaturas humanas.
Os peixes também sonham.
No lago pantanaso, entre miasmas
que aspiram à espessa dignidade da vida,
eles sonham com os olhos sempre abertos.

Os peixes sonham imóveis, na bem-aventurança
da água fétida. Não são como os homens, que se agitam
em seus leitos desastrados. Na verdade,
os peixes diferem de nós, que ainda não aprendemos a sonhar
e nos debatemos, como afogados, na água turva
entre imagens hediondas e espinhas de peixes mortos.

Junto ao lago que eu mandei cavar,
tornando verdade um incômodo sonho de infância,
interrogo a água escura. As tilapias se escondem
de meu suspeitoso olhar de proprietário
e se recusam a ensinar-me como devo sonhar.
...

I cannot accept that dreams
are the privilege of human beings alone.
Fish also dream.
In the swampy pond, amongst miasmas
aspiring to the thickened dignity of life,
they dream with eyes always open.

Fish dream motionless, in the bliss
of fetid water. They aren't like men, who toss
and turn in their unhappy beds. In truth,
fish are different from us, who have not yet learned to dream,
and we struggle, as if drowning, in turbid water
among hideous images and the bones of long-dead fish.

Beside the pond I ordered to be hollowed out,
making a troublesome dream of childhood come true,
I question the dark water. The tilapias hide
from my suspicious owner's gaze
and refuse to teach me how I ought to dream.
...

Uma rua me conduzia até o porto.
E eu era a rua com as suas janelas dilaceradas
e o sol despositado na areia materna.
Eu levava para a beira do mar tudo o que surgia
à minha passagem: portas, rostos, vozes, colônias de cupim
e réstias de cebola que amadureciam na sombra
dos armazéns próvidos. E sacos de açúcar. E as chuvas
que haviam enegrecido os telhados das casas.
Era um dia de dádivas. Nada estava perdido.
As ondas celebravam a beleza do mundo.
A terra ostentava a promessa da vida.
E eu despositava a minha leve carga
nos porões dos navios enferrujados.
...

A street led me to the port.
And I was the street with its torn windows
and the sun set down in the maternal sand.
I carried to the seaside everything that appeared
during my passage: doors, faces, voices, colonies of termites
and braided onions ripening in the shadows
of well-stocked storerooms. And sacks of sugar. And the rains
that had darkened the roofs of the houses.
It was a day of offerings. Nothing was lost.
The waves celebrated the beauty of the world.
The earth put on parade its promises of life.
And I lay down my own light load
in the cargo-holds of those rusting ships.
...

The Best Poem Of Lêdo Ivo

O SILÊNCIO INCOMPLETO

Que silêncio incompleto entre tantos rumores!
Agora, e só agora, eles tentam dizer-nos
que amaram e esqueceram, e sempre ficaram longe
da verdade final. O amor é uma dívida
irresgatável contraída na escuridão
e só morte libera os pagadores relapsos.

Tudo terminará num oceano de sombras.
Os mortos também acabam, após tantas lágrimas
e missas cantadas e anúncios nos jornais.
Nascemos para nos evaporar, após ter sido
a água que cobre a rampa do estaleiro.
Nascemos para dizer o nosso nome ao vento.

Nossos corpos rastejaram até a entrada da gruta.
Mas onde estavam as almas naquele instrante
de êxtase e servidão? Estavam escondidas
como os morcegos, dormiam plácidas como as placentas.

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